Archive for 2018
A minha sorte nestas coisas não mudou. O guia é coxo e o spotter é maneta, não estou a brincar... está aqui uma bela equipa para ir à caça de Lémures nas montanhas do Parque Natural de Ranomafana.
O spotter, que supostamente vai na frente de catana na mão a abrir caminho, não tem o braço direito e o guia tinha um problema qualquer na perna que o fazia subir e descer degraus com bastante dificuldade. Mas não fica por aqui, o guia devia estar com problemas familiares e passou metade do tempo a ver se tinha rede de telemóvel para falar com a mulher. Quando conseguia ligação, só se ouvia ela a mandar vir com ele aos berros do outro lado... acho que o coxo andou a saltar a cerca :)
No briefing inicial ele, como qualquer guia profissional, baixou as minhas expectativas. Ah e tal ontem foi lua cheia... se calhar os Lémures estão cansados porque são muito ativos em noites de lua cheia... talvez seja difícil ver algum... ok pá já percebi, a lua cheia é tramada né amigo lol, não te preocupes, não fico chateado contigo se só virmos floresta.
E que floresta, diferente de qualquer outra que já vi. Mais aberta e espaçada que a floresta tropical “normal”. Esta deixa a luz chegar até ao chão e o resultado são flores incrivelmente coloridas e exóticas, grande parte só existe aqui mesmo, nestas agrestes montanhas. Entre uma e outra chamada da mulher o guia lá me ia dizendo que aqui acontece o oposto da África continental, onde os animais são grandes e imponentes. Aqui temos de olhar os pormenores, como esta micro orquídea ou este escaravelho girafa, ambos endémicos de Madagáscar.
Estava eu a pensar que com tanto barulho até os Lémures já deviam estar a milhas com medo da mulher do guia, quando o spotter me vem buscar e me leva mata dentro fora do trilho. Lá estão eles, maiores do que imaginava, empoleirados nos ramos a saltar de copa em copa à procura das mais saborosas guiavas. São peludos, pelo grosso e suave, como bichos de peluche de carne e osso.
Ao longo da manhã vejo quatro espécies distintas de Lémures. Dos famosos anelados a preto e branco, aos enormes e pesados Golden Bamboo Lémure. Pelo caminho vários camaleões e insectos de formas absurdas, confirmam o exotismo que tornam as florestas desta ilha tão misteriosas. Tudo por aqui é realmente diferente, até plantas comuns como o café selvagem ou o gengibre da floresta assumem cores e formas caprichosamente diferentes. Por ter crescido no meio dos lotes de café do meu pai, tenho uma curiosidade natural com a planta e as espécies de café e aposto que nem ele sabia que havia uma espécie especifica daqui que quando madura fica com as bagas azuis.
Já no regresso o guia finalmente consegue acalmar a mulher, oiço risos do lado de lá... fico feliz por ele. Deve-se ter desculpado com a lua cheia :)
Eu volto ao hotel, tomo um duche, um café e sigo viagem para a costa este. Ainda tenho 4 horas de luz, mais do que suficiente para chegar a tempo de um mergulho nas areias de Manakara. Pelo caminho tenho provavelmente a mais bela estrada de Madagáscar e umas das mais bonitas que fiz... e já fiz algumas :)
Uma serpente cinza que percorre vales profundos, abertos por rios revoltos, e que contorna montanhas cobertas de floresta com picos de basalto polido pela erosão de milhões de anos. Pouco a pouco abrem-se horizontes de savana verde, bonita, com montanhas mais baixas e separadas por vales de palmeiras de aspecto jurássico. Jurassic Park, é isso! Ou foi filmado aqui ou inspirado neste lugar, as paisagens são incrivelmente parecidas. Só faltam os Raptors a correr pela erva alta.
As pessoas também mudam, são aparentemente mais pobres que no planalto central, andam descalças, vivem em cabanas de madeira e bamboo com telhados de junco. Em contrapartida têm bastante mais que apenas arroz, a floresta dá-lhes uma quantidade e variedade de fruta tal que deixaria qualquer frutaria roxa de inveja. O sorriso continua o mesmo, o sorriso e os carros de madeira que ajudam a transportar tudo empurram-se nas subidas, vai-se à boleia nas decidas. Alguns são bastante completos e detalhados.
Chego a Manakara a tempo de mergulho e de uma cerveja com um motociclista francês que chegou pouco antes de mim.
Escolhemos o mesmo hotel, o único da cidade em frente ao mar e provavelmente o melhor da região. Nada mau para os 15 euros que custa :) Agora é só encomendar a lagosta, lí algures que faz muito bem ao intestino solto lol
A culpa é da lua cheia!
Boa viagem em Malagasy. Aliás, sabiam que as origens desta lingua e dos primeiros nativos remonta às ilhas do Pacifico? Eu não, mas fiquei a saber e não foi graças ao meu Lonely Planet que ficou algures no meio da pista das montanhas de Ranomafana, foi graças a um longo jantar com o Gabriel, um italiano que vive aqui há quase 30 anos.
Soava dia
Há minha espera tenho o Manfred e uma Transalp 600 de 86 com 226.310 quilómetros pronta a enfrentar as estradas de Madagascar. Pronta... ou quase, nos primeiros 200 quilómetros perdeu quase todos os parafusos da carenagem, a embraiagem já viu melhores dias e não trava! vai abrandando... Mas ok, afinal de contas é uma japonesa das boas e vai aguentar com certeza! O Manfred como bom alemão é precavido, dá-me um litro de óleo, duas manetes, um jogo de ferramentas e um spray anti furo, “all set Carlos, ready to go!!”
All set o catano amigo, empresta lá dois desmontas e uma bomba de ar que eu não confio nessas latas anti furo. Ele emprestou os desmontas mas não tem câmaras de ar, sem problema, compro no caminho.
Simpaticamente acompanha-me à saída da cidades, sao 25 quilómetros dentro de um mercado tipicamente africano. Comida, camiões, motos, bicicletas e milhares de pessoas parece que se movem organizadamente como um cardume de peixes. Eu já conheço a experiência mas demora sempre um pouco a apanhar o ritmo africano.
Finalmente em Africa! As Maurícias e Reunião até podem pertencer ao continente mãe mas há muito que perderam a energia africana. Aqui não! Aqui é Africa pura, com tudo o que isso tem de bom e de menos bom também. O primeiro dia de estrada é pra aclimatar a tudo, do calo do rolamento de direção aos buracos na estrada, do trânsito ao frio... Sim frio! A ilha tem como uma espinha dorsal. Uma mega cordilheira que se estende do Norte a Sul e onde ficam instaladas as maiores cidades. Antsirabe onde termino o primeiro dia fica a pouco mais de 2000 metros de altitude.
Pelo caminho chamou-me a atenção um sinal de um restaurante com aquele tipico sinal do boi com as cores espanholas. Paro e conheço o Xavier, um ex-missionário da Murcia que se apaixonou por uma local e se ficou por aqui. Já la vão 25 anos diz ele saudoso, “mas nao consigo voltar a Espanha, já tentei mas não me adapto! Isto é uma terra maravilhosa, gente boa e não nos matamos a trabalhar, temos tempo.” Eu vejo o meu tempo escassear, já passa das 3 da tarde, ainda faltam 100kms e ainda nem almocei. Peço umas tapas ao Xavier convencido que tem lá dentro uma reserva de presunto ou enchidos da Murcia... “te gusta ranas? Son grandes y buenas, aqui hay muchas!” Ok Xavier trás lá as rãs.
Estavam boas, assim como estava a conversa com o Xavier que conhece tudo nesta ilha continente, mas atrasei-me e chego mesmo no limite do lusco fusco. Não há luz na rua, só em casas e nas bancas de rua que vendem comida. Dizem que esta é uma das cidades onde se pode arranjar a logística para descer o rio Tsiribihina de piroga. São dois dias rio abaixo e parece boa ideia.
Não tenho sorte, sozinho fica absurdamente caro e não há grupos previstos para os próximos dias. Isto de viajar sozinho nem sempre é bom... Mas como o que não tem remédio remediado está, vamos acordar cedinho e descer o rio pela margem, na estrada que o acompanha até à costa do Canal de Moçambique.
É isso que faço no dia seguinte, já mais acostumado à moto e às estradas devoro os primeiros 200km em quatro horas e desço a montanha até Miandrivazo. Sim 200kms em 4 horas é uma boa média nestas estradas!
É aqui que fica a estação onde se costumam apanhar as pirogas. Enquanto provo um peixe do rio grelhado (feio como tudo, mas saboroso..) tento mais uma vez uma piroga baratinha mas continuo sem sorte.
Sigo para sul acompanhando os braços do rio, vales enormes e abertos com as montanhas ao fundo. Aqui em baixo o calor aperta, devem estar perto dos 40 graus e parado não se aguenta. Conforme vou avançando vão diminuindo as povoaçoes, a paisagem fica menos rural, com palmeiras de aspecto estranho e pântanos a perder de vista. O sol já começa a ficar dourado quando vejo primeiro baobab ao longe. Não estava previsto para hoje mas talvez consiga chegar à Allée des Baobab a tempo do pôr do sol.
E cheguei! Foi lá que conheci a Keiro, a japonesa que queria ver o meu baobab... ou melhor, que queria mostrar-me o baobab dela... não! O que ela queria dizer mesmo, era que eu tirasse um fotografia dela com a t-shirt de Baobab junto à moto. Mentes sujas!!